Não gosto de necrológicas. Mas fiquei sabendo que morreu o escritor português
Augusto Abelaira, um dos "meus" escritores, autor de um romance extraordinário intitulado "O Bosque Harmonioso", que um dia traduzi com uns amigos ao espanhol. Durante um tempo tive a esperança de conhecer o autor, de falar com ele e pedir permissão para publicar a nossa tradução. Levados pelas indecisões essas malditas indecisões que interrompem as melhores e mais necessárias iniciativas nunca tentamos falar com ele. Agora já não é mais possível.
Eis aqui um fragmento do romance, uma deliciosa fábula lingüística:
"O nosso herói refere-se também aos indígenas que viviam na Baía-da-águia-que-ri-ao-meio-dia-quando-o-Sol-brilha-e-as-rãs-ficam-silenciosas.
Tendo eles descoberto que as palavras não mantinham sempre o mesmo significado, decidiram que cada um escolheria o seu individual vocabulário, comunicando com os outros graças a palavras privadas. Esta opção revelou-se extraordinariamente fecunda e os homens dessa comunidade adquiriram uma elevada noção das suas próprias personalidades. O único senão: não conseguiram entender-se. Mas, concluíam eles, antes assim do que a ilusão de que se entendiam.
Descobri ainda outra comunidade bem mais de espantar: não sei bem porquê, possivelmente porque viam o mundo dessa maneira, usavam uma palavra para peixe, triângulo e Lua (bal) e outra para Sol, carne e árvore (tam). Como se em vez de seis coisas houvesse apenas duas.
E quando diziam bal e comiam peixe, pensavam, se bem os compreendi, que também comiam Lua. E quando observavam a Lua, acreditavam que também viam peixe.
Assim, observei certa vez uma criança a chorar com fome e disse bal. A mãe, muito pobre e sem peixe para lhe dar, apontou-lhe a Lua e a criança calou-se, aparentemente satisfeita.
O mundo deles reduz-se a uma ilusão? Porque não diremos o mesmo do nosso, tanto mais que nunca consegui levá-los a compreender que Lua é uma coisa e peixe outra? E o argumento de que o peixe alimenta e a Lua não, nada prova, eles sentiam-se alimentados. Só a nós, que estupidamente distinguimos a Lua do peixe, a Lua não alimenta.
Falso: alimenta o coração dos apaixonados".
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