Vejo-os quase todos os dias. São jeeps verdes, como de safári, estilo militar, com turistas sentados em bancadas na parte traseira do caminhão e armados de máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, subindo ou descendo a floresta da Tijuca. Mas a floresta está na cidade, bem no meio dela, nesta maravilhosa confusão de mata e asfalto. Com o mesmo troço percorrem outros lugares do Rio, fotografando os exemplares autóctones que encontram no caminho. Domingo passado vi uma mulher loira fotografando uma mendiga sentada no calçadão do Arpoador. Era uma velhinha esfarrapada que sorria docemente para a máquina.
Já me senti observado por olhos curiosos e distantes indo comprar pão e suco na padaria Século XX. As remelas ainda nos olhos, os meus poucos cabelos em ponta, que nem as asas do capacete de Asterix. Aí percebi os flash a mim dirigidos e me senti descoberto, como um artista global flagrado em posição indecorosa pela revista
Bundas (quero dizer
Caras). Minha penosa imagem matutina (e minha alma sonolenta?) ficará presa no álbum de fotos de algum habitante do norte da Europa, como mais uma lembrança do Rio. Curioso destino.
Não é a primeira vez que me sinto assim indígena. Numa outra ocasião fui fotografado por uma turista solerte no cemitério da Corunha, que desaba no mar. O que faz um turista num cemitério? Isso eu não sei, mas parece que os camposantos são lugares muito visitados. Alguns são célebres por conservarem os restos de alguma personagem histórica, convertendo-se assim em destino final para modernos peregrinos laicos mitomaníacos. Em Lisboa, dois colegas de um curso de verão, um canadense e um alemão,
pessoanos, convidaram-me anos atrás a visitar com eles o Cemitério dos Prazeres. Recusei-me, preferi ir à praia, onde os prazeres estão vivos sobre a areia. É o que podemos chamar "turismo mórbido ou funerário", a forma mais macabra em que se manifesta esse desejo de estar ali (onde for), de documentá-lo e contá-lo depois aos amigos, que alimenta doentiamente nossas ânsias de consumo turístico.
Na Galiza, há tempo que progride com a anuência e o estímulo dos nossos governantes um tipo de turismo que podemos chamar "catastrófico". Durante os anos em que os restos do petroleiro
Aegean Sea permaneceram encaixados nas falésias que circundam a Torre de Hércules, foram muitos os visitantes que se achegavam para se fotografarem no lugar do desastre. Também muitos dos visitantes que recebeu Galiza durante a páscoa passada foram até lá para verem com os próprios olhos a dimensão da catástrofe do
Prestige, e para se fazerem a foto (estou pensando agora que talvez a falta de médios para prevenção deste tipo de acidentes faça parte de um ardiloso plano de Man
oil Fraga para reativar nossa economia e nos situar no mapa; inconfessável, mas com a mesma dimensão que os programas de "turismo rural").
Na mesma onda do "catastrófico" está o "turismo indigente", organizado por companhias que agenciam pra você uma visita guiada nos centros de pobreza do Rio. A favela, destino turístico. É verdade que estas agências oferecerem certas contraprestações sociais e colaboração para o desenvolvimento das comunidades carentes. Ocorre-me, contudo, um senão (descomunal): dado que vendem ao turista a possibilidade de visitar uma favela, de estar ali, num local pobre e violento, e poder contar a experiência, precisam indefectivelmente da existência da favela e da perpetuação dessa pobreza e violência que origina a visita turística e os seus lucros. Aliás, alimentam o descompromisso de quem, estando ali, não está nem aí, e depois vai tomar banho de sol em Copacabana. Fazem da favela algo tão imutável quanto o Pão de Açúcar, um outro prodígio da Cidade Maravilhosa.
Nunca mais vou me deixar fotografar por estranhos.
¶