> A modernização da monarquia tem apenas um nome (e não é Letizia). <
Nunca conheci um monarquista convencido. Nunca vi um ao vivo, face a face, apenas as suas imagens virtuais na televisão. Devo então acreditar que existem. Parece que por causa do enlace matrimonial do herdeiro da coroa espanhola com uma jornalista oficial (governamental), os monarquistas de toda a vida tiveram seu espaço na mídia, pontificando sobre o absurdo sangüíneo que ia ser consumado com o acesso de uma plebéia ao trono da Espanha. Desconfio que a missão transcendental dessas vozes do além seja precisamente fazer-nos acreditar que a atual monarquia espanhola não tem nada de disparatado, que é uma instituição aberta à sociedade, quase democrática. Se comparada com os autênticos monarquistas de toda a vida, esses indivíduos tão engraçados no seu alucinado anacronismo, até a figura do rei parece razoável, porque o rei, na realidade, não é tão monárquico assim. Mas nem a simpatia televisiva do rei pode ocultar que a instituição que representa, constitucionalmente constituída em chefia do Estado, é hereditária, transmite-se pelo sangue, como certos vírus, e depende inteiramente da conservação da linhagem. Desde essa perspectiva o único que se pode pedir de uma rainha é que seja boa parideira.
Vendo na internet a informação gerada pela notícia do enlace, fiquei pensando no último magnífico filme de Aristarain, Lugares Comunes. O personagem de Federico Luppi, meu herói cinematográfico (fodam-se os xuadsenagers, os tomcrus, os kiaunurivs e outros de igual ou parecida ralé), reconhecia que nestes conturbados tempos se faz necessário reivindicar de novo o óbvio, os três princípios da revolução francesa que deram passo à modernidade: Liberté, Egalité, Fraternité.
É por isso que desde que li a notícia me ardem os dedos com o premente desejo de escrever bem claro algo evidente e simples, ressuscitando depois de meses este blog inconstante:
A modernização da monarquia tem apenas um nome: REPÚBLICA ¶
Às 15:15 do dia 13 de Novembro de 2002, o petroleiro Prestige, que navegava junto à costa da Galiza, lançava um S. O. S., alertando sobre as suas grandes dificuldades. À deriva durante seis dias, acabou por afundar-se, originando uma catástrofe ecológica e social sem precedentes na nossa história.
Um ano depois, continuamos à espera que se demitam os responsáveis públicos que, com as suas decisões inapropriadas, converteram o acidente numa tragédia para um país.
Este blog não esquece os culpados do desastre, nem compartilha do discurso triunfalista das autoridades, e está consciente de que o governo não adoptou ainda nenhuma medida que possa evitar que algo de semelhante volte a acontecer.
Continuaremos exigindo responsabilidades.
NUNCA MAIS
"E tal dia fez um ano". Costuma dizer-se assim para encomendar ao esquecimento os acontecimentos a que damos uma importância desmesurada. Imagino que ao longo destes trezentos e sessenta e cinco dias os políticos envolvidos no desastre do Prestige repetiram essa sentença com a esperança de conseguir para as suas responsabilidades um esconderijo seguro.
E esta semana completa-se o primeiro aniversário deste acontecimento, um dos mais trágicos da nossa história, que eles converteram em inesquecível com a sua incompetência e sua soberba. Pior seria para nós se fosse cumprido o desejo que o seu preto coração oculta de não sabermos tirar aprendizagem e experiência deste asunto.
Agora sabemos que não temos Estadinho, que a sua autonomia e o seu estatuto são apenas mais uma forma de nos manter submetidos e de anular a nossa capacidade de decisão e de reacção: que ninguém faça nada, porque isto é para se tratar em Madrid, parece ter dito alguém com muito mando. Podem ir caçar, insistiu. E os de cá (que são os mesmos de lá) foram obedientes "a corcear", como diria Ánxel Fole, que quem paga é elcorteinglés.
Mas também aprendemos que não temos Estado. Que aquele ao qual pertencemos por imperativo legal tampouco não serve para nada além de andar com o barco de cima para abaixo soltando merda como quem caga num ventilador. Enquanto uns tantos caçavam e os outros olhavam para o lado, assobiando para o ar.
Naquele momento soubemos de uma vez por todas que o nosso só terá saída se formos capazes de agarrar o futuro com as nossas mãos. Que são as nossas mãos nuas o único instrumento com que contamos para sermos alguém. Que nada podemos esperar de uns políticos mentirosos e falsários que nem se atreviam a vir, porque além disso são cobardes e estúpidos.
E comprovamos com tristeza mas com orgulho como soavam mais de duzentas mil vozes a coro no Obradoiro; como se uniam as mãos das crianças galegas para encadear esta tragédia com um futuro mais esperançoso Como crescia a indignação enquanto se descobria a indignidade que os cobria e os cobrirá. Como as janelas e varandas se enchiam de berros em branco e negro, enquanto o seu coração remoía ódio e rancor ao contemplar que não aparecia em nenhum lado a resignação e a submissão que esperavam.
E assim, aprendizagem após aprendizagem, fomos construindo uma experiência nova, que vale tanto como dizer, um conhecimento da realidade que nos aproxime um pouco a fazermo-nos donos do nosso futuro. A dizer-lhes que não podemos confiar em ninguém senão em nós mesmos, porque nos demonstraram que nos desprezam tanto quanto são capazes, como de facto fizeram, de insultar e blasfemar impunemente. Dizer-lhes que sabemos que no fundo sabem como de grande foi o nosso sofrimento, mas ignoram como é grande agora o nosso conhecimento. Provocaram-nos um grande dano, mas proporcionaram-nos o poder de enxergar o caminho da sabedoria: os sábios são livres.
Também nos deixaram um rosário de tristes palavras: fiozinhos de plasticina, fuel que se converterá em pedra, só sabemos que não sabemos E outras pérolas das quais só quero destacar mais uma: cães que ladram nas esquinas, porque na Costa da Morte se diz que os cães que ladram em vésperas de Natal fazem isso para avisar que chegam os esbirros de Herodes para degolar os inocentes.
Haverá quem me diga que não aprecia tais aprendizagens na realidade de hoje, mas quero dizer a quem assim o pense, que as mudanças que se produzem nos corações demoram para se manifestar na sociedade. Por isso me atrevo agora a dizer que faz um ano que começou para muitíssimos galegos um tempo novo e, com a sua força, já NUNCA MAIS nada vai ser como antes.
Hoje encontrei num sebo (loja de livros usados, que em Portugal chamam de Alfarrabista) do centro da cidade um livro intitulado O linguajar carioca, publicado no ano 1953 por Antenor Nascentes. O primeiro que me chamou a atenção foi a capa, igualzinha às dos clássicos Castalia espanhóis. É um estudo dialetológico do falar carioca, e embora o autor tenha uma visão profundamente essencialista da língua, apresentada como uma realidade biológica, oferece informações bem interessantes (pelo menos, para quem curte estas perversões lingüísticas, como eu). Como podem imaginar, fui rápido descobrir alguns paralelismos com o galego, que o autor reconhece usando como fonte de informação o Manual de gramática histórica de Garcia de Diego. Vejam só algumas afirmações:
"Em ontem, a pronuncia popular onte (como a forma galega) é a verdadeira, pois o m é uma nasal de contaminação".
"No sufixo -agem e nas terminações -igem, -ugem, não faltam exemplos literarios de desnasalação [...] Em galego, as formas desnasaladas também aparecem: orige, home".
"No grupo qua, ou é absorvido (o /u/) (especialmente quando o a é tónico), ou labializa o a, fundindo-se com ele ua-uo-o (especialmente quando é átono). [...] O mesmo se dá em galego: corenta, contía, coresma".
"Ha uma verdadeira propensão brasileira para os diminutivos, como já observou Silvio Romero. O carioca não escapou a ela. Abusa do diminutivo".
"Mais melhor vem no Leal conselheiro, [...] Em galego mais milhor".
"[...] dezesseis nas classes culta e semiculta e dezasseis, como em Portugal (e na Galiza, afirmo eu) na classe inculta".
"antonte (e em nota a rodapé: "Em galego igual"), tresantonte, despois ou dispois."
"também ou tamém".
"Aparecem muitos adverbios no diminutivo: agorinha mesmo, até loguinho, venha bem cedinho, mora ali pertinho, anda direitinho, fala baixinho".
Etc, etc, etc.
Por não falarmos de outros fenômenos da fala que o autor, nesse "linguajar" pseudo-científico, denomina casos de "patologia" lingüística, incluindo o equivalente galego em nota a rodapé "entrevalo, porcesión, misquiño, cirimonia, vistimenta, miñán, chiculate, sacreto em galego". Esse fenômenos todos na fala popular carioca dos anos 50. Imaginem agora a norma lingüística que se poderia construir desde a fidelidade a esses falantes. Dêem uma olhada na norma do galego (com ou sem reforma) e digam se faz falta, sinceramente.
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Já foi aprovada pela Academia Galega uma revisão das normas ortográficas e morfológicas do galego e quase nem tive tempo de acompanhar as reações que causou na sociedade (se realmente teve algum efeito reconhecível) ou os comentários que levantou, com exceção dos que realizou o incontornável Martin Pawley, que leio assiduamente. Aliás, em um dos comentários até me chama à guerra, pedindo-me para falar de beirarrúas e de romaneses, ou de beirarrúas romanesas ou algum coisa do estilo.
Lendo a tábua de mudanças da norma fico imaginando o processo de negociação entre lingüistas como uma cena meio maluca. Não sei porquê (isto é figura retórica, sei perfeitamente porquê), lembro um anúncio publicitário que passou algum tempo atrás nas televisões espanholas, de um jogo de mesa que consistia em ir somando palavras de determinados campos lexicais. Na cena final, um tipo sai da casa dos amigos com quem tinha estado jogando, rabugento, ofendido, agarrando fortemente a caixa do jogo contra o peito. Atrás, na porta da casa, os amigos desesperados dizem com voz consentidora: "Tá bom! Admitimos polvo como bicho de estimação...!" Tenho a impressão (como sou delicado, meu deus!) de que alguma coisa do estilo deve ter-se passado. Na realidade, sempre é assim, qualquer negociação com os donos do jogo supõe ter presente que os tipos podem se levantar e ir embora e nos deixar como estávamos, ou pior, já sem qualquer esperança de alguma coisa mudar. E a questão da norma lingüística sempre foi uma questão de poder. A reforma da norma do galego permite a um grupo significativo de pessoas vinculadas à cultura se situar dentro da "legalidade" sem perder a vergonha da cara. Assim, quando a reforma diz "Galiza considérase forma galega [ainda bem!], documentada na época medieval e recuperada no galego contemporáneo" ou "Considéranse admisibles tanto ble como bel" para os adjetivos, muitos galegos se sentem menos constrangidos pelo uso da chamada "normativa oficial". É alguma coisa, pelo menos (e pelo menos também o famoso "alomenos" ficou fora da norma).
Mas o debate normativo ultrapassa significativamente esta questão. Preocupa que alguns falem em "Pax Lingüística", até porque como referência à histórica "Pax Romana" alude a uma situação de dominação imperial sem espaço para oposição ou resistência. Que jornais galegos falem em "acordo ortográfico" quando a questão gráfica permanece intocada, não nos deve causar espanto. Pode ser maliciosa ignorância ou ignorância apenas.
O problema é que, na realidade, não houve debate de fundo e que essa possibilidade de debate foi furtada à sociedade, que alguma coisa terá pra dizer sobre isto da língua. Qualquer discussão torna-se impossível se não se admite que o problema da representação escrita de uma língua que sobreviveu durante séculos num estágio de oralidade não é algo tangencial, muito pelo contrário, está no centro do conflito lingüístico que se vive na Galiza. Não aceitar isto tão simples é promover as ficções de que falávamos dias atrás. E nesse sentido, a construção de uma língua-padrão eqüidistante do espanhol e do português não deixa de ser uma ficção. E aí entram todas as arbitrariedades que Martin Pawley comentava em seu blog. O galego oral falado durante séculos por camponeses e marinheiros à margem da língua oficial não tinha uma palavra para designar a calçada por onde andam os pedestres, até porque o asfalto demorou a chegar nas aldeias galegas (diga-se de passagem que quando chegou tomou conta de tudo, os especuladores difundindo a idéia de que o progresso se mede apenas em toneladas de asfalto). Onde não existe a coisa não existe também a palavra que a designa, é claro. Neste caso, com a coisa chegou a palavra espanhola "acera". O processo de criação de palavras por composição para designar realidades do mundo moderno é habitual nas línguas africanas que alcançaram algum reconhecimento oficial após a descolonização. Assim, por exemplo, em swahili o avião passou a se chamar ndege ulaya, que significa 'pássaro europeu', substituindo a palavra inglesa. Mas era necessário realmente inventar uma palavra por composição como "beirarrúa" para substituir a "acera" espanhola, como se o galego estivesse sozinho no mundo? Não existiam calçadas (ou passeios) no Brasil ou em Portugal? E o que dizer do gentílico romanés, criado exclusivamente para evitar coincidências com o espanhol rumano e o português romeno? Era necessário apenas porque a arbitrariedade dá aos donos do jogo um poder absoluto sobre o próprio invento. Aos efeitos práticos, não é importante conhecer o galego para entrar na administração pública, é suficiente com conhecer os meandros das convenções normativas de ontem ou de anteontem. De fato, acaba se fazendo necessário "desconhecer o galego" para ter um apurado domínio da letra pequena da norma. Sei do que falo. Para sobreviver, dei aulas de língua galega para pessoas que queriam fazer concurso público na Galiza e me deparei com a norma e com seu uso mais perverso. Esse uso policial é uma cruel ironia e um triste destino para o galego, caso insólito de privatização de uma língua popular.
De um lado, a visão estreita do processo de construção nacional, ao pretender construir uma língua particular para a Galiza (na equação, que aliás realizam sistematicamente os Estados, "uma língua - uma nação"), vê não apenas no espanhol mas também no português uma ameaça. Doutro lado, o processo de construção nacional inconcluso, que tem o seu limite no regime autonômico da nação espanhola, dá finalmente nisso, uma nação "regional" e uma língua "regional". Duas ficções pouco prestigiadas que pouco têm a fazer frente a outras ficções bem mais poderosas. Neste sentido diz Einar Haugen (num artigo intitulado "Dialeto, Língua, Nação"):
"A aceitação da norma, mesmo por um grupo pequeno mas influente, é parte da vida da língua. Qualquer aprendizado requer o empenho de tempo e esforço, e deve de algum modo contribuir para o bem-estar dos aprendizes, para que não queiram cabular as aulas. Uma língua-padrão que é o instrumento de uma autoridade, como um governo, pode oferecer a seus usuários recompensas materiais na forma de poder e posição. A que é instrumento de uma confraria religiosa, como uma igreja, pode também oferecer a seus usuários recompensas no futuro. As línguas nacionais têm oferecido o acesso ao título de membro de uma nação, uma identidade que dá à pessoa o ingresso num tipo novo de grupo, que não é apenas parentesco, governo ou religião, mas uma mistura inédita e peculiarmente moderna dos três. O tipo de importância atribuída a uma língua neste contexto tem pouco a ver com seu valor enquanto instrumento de pensamento ou persuasão. É primordialmente simbólico, uma questão do prestígio (ou falta do prestígio) que se prende a formas ou variedades específicas de língua em virtude da identificação do status social de seus usuários. O domínio da língua-padrão terá naturalmente um valor mais alto se ele permitir à pessoa ingressar no concílio dos poderosos. Do contrário, o estímulo para aprendê-la, exceto talvez passivamente, pode ser muito baixo" (grifo meu).
Embora na Galiza os poderosos falam espanhol até quando "falam galego", como todos sabemos, o conhecimento da língua-padrão galega construída permite participar em alguns dos seus rituais e abre as portas para o ingresso numa peculiar confraria onde é possível conseguir recompensas materiais e alcançar posição social. Não podemos mais pensar que conseguiremos acabar com os modelos de dominação lingüística que combatemos na Galiza percorrendo à revelia esses velhos caminhos. Por isso é que se faz necessário e urgente descobrir, inventar outros caminhos que não passem por aí. A minha intuição me diz que o que se impõe realmente como necessidade não é comprarmos o jogo, mas destruí-lo. No caso do galego, iniciarmos a destruição das fronteiras lingüísticas que nos impuseram não me parece mal começo.
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Não gosto de necrológicas. Mas fiquei sabendo que morreu o escritor português Augusto Abelaira, um dos "meus" escritores, autor de um romance extraordinário intitulado "O Bosque Harmonioso", que um dia traduzi com uns amigos ao espanhol. Durante um tempo tive a esperança de conhecer o autor, de falar com ele e pedir permissão para publicar a nossa tradução. Levados pelas indecisões essas malditas indecisões que interrompem as melhores e mais necessárias iniciativas nunca tentamos falar com ele. Agora já não é mais possível.
Eis aqui um fragmento do romance, uma deliciosa fábula lingüística:
"O nosso herói refere-se também aos indígenas que viviam na Baía-da-águia-que-ri-ao-meio-dia-quando-o-Sol-brilha-e-as-rãs-ficam-silenciosas.
Tendo eles descoberto que as palavras não mantinham sempre o mesmo significado, decidiram que cada um escolheria o seu individual vocabulário, comunicando com os outros graças a palavras privadas. Esta opção revelou-se extraordinariamente fecunda e os homens dessa comunidade adquiriram uma elevada noção das suas próprias personalidades. O único senão: não conseguiram entender-se. Mas, concluíam eles, antes assim do que a ilusão de que se entendiam.
Descobri ainda outra comunidade bem mais de espantar: não sei bem porquê, possivelmente porque viam o mundo dessa maneira, usavam uma palavra para peixe, triângulo e Lua (bal) e outra para Sol, carne e árvore (tam). Como se em vez de seis coisas houvesse apenas duas.
E quando diziam bal e comiam peixe, pensavam, se bem os compreendi, que também comiam Lua. E quando observavam a Lua, acreditavam que também viam peixe.
Assim, observei certa vez uma criança a chorar com fome e disse bal. A mãe, muito pobre e sem peixe para lhe dar, apontou-lhe a Lua e a criança calou-se, aparentemente satisfeita.
O mundo deles reduz-se a uma ilusão? Porque não diremos o mesmo do nosso, tanto mais que nunca consegui levá-los a compreender que Lua é uma coisa e peixe outra? E o argumento de que o peixe alimenta e a Lua não, nada prova, eles sentiam-se alimentados. Só a nós, que estupidamente distinguimos a Lua do peixe, a Lua não alimenta.
Falso: alimenta o coração dos apaixonados".
"Tenho uma grande constipação física,
preciso da verdade e de aspirina"
Fernando Pessoa
Não sei se me desculpar pela ausência. Possivelmente os quatro amigos que lêem isto com alguma regularidade (dentro da irregularidade com que vão aparecendo novos textos) nem sentiram a falta durante estes dias. Doutro lado, é uma ausência injustificada. Poderia causar apercebimento aos pais ou até expulsão, de serem aplicadas ao mundo dos blogs as rígidas normas escolares. Dizer que andei muito ocupado estes dias está fora de cogitação. Aliás, com muitas ocupações está todo o mundo, sem que isso possa ser considerado uma desculpa válida para "furar" compromissos. Direi só, sem que sirva de justificativa, que andei afastado da internet, do computador até, porque é assim que tenho estabelecida a minha relação com o aparelho este, sem datas, sem horários, sujeito apenas à minha vontade soberana e a ocasionais e urgentes necessidades comunicativas. Na realidade sou um internauta medíocre. E estou achando que um péssimo blogueiro. E se não se importam não pensem que é desrespeito, muito pelo contrário continuarei assim. Com este ritmo desregrado, de improdutividade variável, entre a calmaria e o furacão, como o mar, a única força viva que não acaba.
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Tomo emprestado o título de um conhecido artigo de Ricardo Carvalho Calero, onde se critica com acerto a desigualdade lingüística consagrada na constituição espanhola, para a qual falar galego é apenas um direito individual dentro das fronteiras administrativas da Galiza, sendo obrigatório para todos os cidadão do Estado unicamente o conhecimento do espanhol. Pensei muito nesse artigo estes dias, ao constatar que o tímido reconhecimento da realidade lingüística galega não deixa de ser uma inocente peculiaridade regional que quase nem sentimos os nativos e cuja realidade, entre os não nativos, é só perceptível para iniciados. A cooficialidade é assim como uma creche em que o Estado encerrou o galego para deixá-lo brincar ali sozinho de gente (língua) grande. Uma concessão sem maiores perigos. O preço da aculturação já foi pago em termos de invisibilidade social, de inexistência aos efeitos práticos. Parece desânimo, mas não fiquem preocupados não, na realidade estou ganhando em temperança, não quero me enganar confundindo a realidade com o desejo (embora continue pensando que só o desejo pode mudar a realidade). A luta local pelo topônimo galego da galega cidade da Corunha, que ganha novas nuanças nos últimos tempos com a possível punição ao governo municipal por incumprimento da lei, não deixa de ser isso, local, e é uma luta já perdida (irremissivelmente?) no âmbito internacional. Causava-me irritação e hoje apenas uma certa tristeza comprovar que no Brasil, o país com maior número de falantes da nossa língua (ou de mais uma variedade de um antecendente lingüístico comum nascido na Galiza, para não escandalizar ninguém), A Corunha é conhecida como La Coruña, assim mesmo, com "l" e com "ñ". Por esse nome, que aliás o próprio clube exibe com orgulho provinciano, é conhecido o nosso time de futebol, o "Deportivo"; assim é representado na escrita em todas as ocasiões, mesmo em traduções literárias feitas desde o espanhol de textos escritos originariamente em galego. Por exemplo, na versão brasileira d' O Lápis do Carpinteiro, de Manuel Rivas, o doutor De la Barca é preso e quase assassinado no cárcere de La Coruña, apesar de o texto dizer originariamente que foi "na Coruña" onde esses fatos aconteceram.
(Isto das "traduções" dá lugar a fenômenos bem curiosos: o relato de Rivas A lingua das bolboretas, originariamente escrito em galego, dá lugar à tradução espanhola La lengua de las mariposas, que serve de base ao roteiro do filme intitulado do mesmo jeito. Quando se apresenta o filme no Brasil, a (má) tradução desde o espanhol, e desde o absoluto desconhecimento da origem galega (que fica assim oculta num inextricável passado), é A língua das mariposas. Mas as mariposas por estas terras brasileiras são aqueles bichos noturnos que ficam voando ao redor das luzes e não as borboletas de que fala o conto de Rivas. Os intrincados caminhos da tradução de uma língua a si própria são insondáveis...).
Na minha nova documentação brasileira, e apesar de figurar em meus documentos espanhóis exclusivamente o nome oficial do topônimo, em galego, o meu local de nascimento é, ó ironeia!, "La Coruña". Tanta luta, tanta re-descoberta da minha própria língua noutro continente para isto. Manda caralho! Não somos nada, mas não somos nada mesmo! O nome da minha cidade no português do Brasil é igual que em espanhol, a língua que nos dá a conhecer (ou a des-conhecer) pelo mundo afora. Também "Galiza", a única forma galego-portuguesa, é apenas mais uma extravagância própria de filólogos aposentados (que no Brasil são quase todos), pois por estas terras todo o mundo fala só da "Galícia" (e o meu corretor brasileiro de Word marca o erro (?) com um sinuoso traço vermelho, mas isso não importa, o meu corretor não fala). Num primeiro momento vivi de uma forma meio revoltada isso de comprovar como nossas lutas sociais/locais eram tão amplamente desconhecidas. Mesmo para quem devia estar bem informado. Sempre me chamou a atenção o mapa situado nas páginas iniciais da gramática de Cunha e Cintra, onde figuram os territórios peninsulares de língua portuguesa. Ali aparece todo o ocidente peninsular, com os co-dialetos galegos do português representados. Mas nesse mapa esclarecedor os nomes das capitais provinciais galegas se nos oferecem apenas com o nome traduzido ao espanhol, "La Coruña" e "Orense", até nas últimas edições.
Assim poderosa e alongada é a sombra da LÍNGUA OFICIAL (que na Galiza, por se ficava alguma dúvida, é o espanhol).
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"Quando Karl Marx enunciou seu emblemático clamor pela união de todos os trabalhadores do mundo, avaliou com nítida precisão que as fronteiras podem ser uma conveniência para setores específicos da burguesia, mas são uma irrelevância para o sistema capitalista como um todo. A última coisa que Marx poderia esperar era que a classe trabalhadora fosse contemplada pela burguesia como um bode expiatório para os seus próprios fins, mas que para usufruí-lo ela tivesse que voltar a admitir que realmente façam sentido as linhas imaginárias das fronteiras nacionais. Ou seja, acreditar que pelo mero fato de atravessar uma alfândega portuária, legal ou ilegalmente, um ser humano deixa de ser gente e passa a ser coisa".
Nicolau Sevcenko, do Prefácio ao livro A Inexistência da Terra Firme. A Imigração Galega em São Paulo 1946-1964 [São Paulo, Edusp: 2002], de Elena Pájaro Peres, que também se abre com a seguinte magnífica citação de Guimarães Rosa:
"Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu pra estarrecer a toda a gente. Aquilo que não havia, acontecia".
Está no Rio, convidado pelo Núcleo de Estudos Galegos da Universidade Federal Fluminense, o professor chileno Edmundo Moure, autor do livro Galicia y Chiloé: confines mágicos, onde traça curiosos paralelismos entre terras tão distantes. Chiloé, do veliche (antiga língua dos mapuches) "lugar das gaivotas", é uma ilha do sul de Chile com clima e paisagem idênticos aos galegos, colonizada no século XVI por espanhóis que a chamaram de "Nueva Galicia". A capital chama-se Santiago de Castro e foi fundada em 1567. Ali abundam os Andrade, os Baamonde, os Varela, os Freire, os Quiroga e se mantêm costumes e tradições formadas do sincretismo entre a cultura mapuche originária e a cultura galega dos colonizadores. Não é difícil perceber, por exemplo, a identidade entre os traucos chilotes, pequenos habitantes da floresta, e seus primos galegos, os trasnos. Também alguns costumes parecem ser reflexo ou equivalente fiel de tradicionais formas de agir na Galiza. Naquela terra de minifúndio, com uma economia de beira-mar (agrícola e marinheira), muitas lavouras são feitas comunalmente, com a ajuda dos vizinhos, que, por sua vez, receberão a colaboração solidária dos outros quando precisarem. Mas este saudável costume adquire dimensões extraordinárias entre os chilotes, a atividade que exige colaboração do maior número vizinhos é o que eles chamam "tiradura de casa". Quando alguém em Chiloé decide se deslocar para um outro lugar da ilha, realiza uma mudança integral, com casa incluída. Isto é, as casas de dois andares, construídas totalmente de madeira, vão com eles pelo mar. Navegando. Um documentário ilustrando a palestra do professor chileno mostrava a insólita imagem de uma casa sendo rebocada pelo mar, com todo um andar dentro d'água, após ser tirada do lugar por várias juntas de bóis. O trabalho é enorme, e totalmente artesanal, sem ajuda de aparelhos mecânicos. Os vizinhos que acodem ao chamado do "suplicante" são recebidos com abundante comida e bebida, por isso é que ao final o trabalho acaba se convertendo em festa. Ah, e os chilotes também são grandes comedores de batatas.
Enquanto ouvia a palestra vinha à minha memória o livro de Valentín Paz Andrade, A Galecidade na Obra de Guimarães Rosa, onde são traçados igualmente paralelismos entre a cultura tradicional e agrária galega e a do Nordeste brasileiro retratada pelo romancista. Nesse caso, aliás, podem se reconhecer também as pegadas lingüísticas do antigo galego (ou galego-português, se quiserem) levado pelos colonizadores, diferentemente do que acontece em Chiloé, onde os galegos assentados foram igualmente assimilados à língua do país que inventava a Colônia naquelas terras do outro confim do mundo. Diga-se, entre parénteses bem grandes, que em ambos os casos a ação colonizadora foi tão brutal que das culturas do primeiros moradores hoje ficaram apenas rastros. Da língua veliche, apenas abundante léxico e algumas caraterísticas fonéticas transparecem no castelhano falado pelos atuais chilotes. Também lembrei um documentário que vi na televisão galega sobre uma cidadezinha chamada Betanzos em Colômbia (ou Bolívia?), que tinha, como "a dos cavaleiros", uma famosa feira da batata e onde era costume lançar balões com mensagens ao céu.
Talvez, isto tudo demostre apenas que as culturas tradicionais ligadas ao trabalho na terra e no mar são muito parecidas em todo o mundo, que existe uma ancestral sociedade global do trabalho que se manifesta de formas semelhantes em culturas particulares de diferentes lugares. O qual favorece o sincretismo quando as circunstâncias históricas, que quase sempre envolvem invasões, guerras e migrações em massa forçadas, põem em contato essas sociedades.
É curiosa a obsessão dos galegos por nos reconhecermos em outros povos, por nos equipararmos com outros lugares, por traçar esses paralelismos. Tudo bem, enquanto não seja puro narcisismo e sim o reconhecimento das possibilidades de comunicação com culturas só geograficamente distantes e da necessidade de uma solidariedade internacional entre todos aqueles que vivem do trabalho (entre as "multitudes dos campos" ou "gentes do trabalho", em palavras de Rosalia de Castro).
Aproveitando o final de semana longo que tivemos no Rio estive com MinhAmor na Serra, curtindo um friozinho. Passando frio, na realidade. A só duas horas e meia de carro desde a cidade do Rio dá para esquecer que vivemos num país tropical (mesmo assim abençoado por Deus e bonito por natureza...). Os três graus centígrados da noite na montanha destruíram toda a minha aureola de homem nórdico, acostumado às condições climáticas mais adversas, que tinha lavrado no Rio, e contribuíram decisivamente para uma nova imagem da minha humildérrima pessoa, com o nariz vermelho fungando e nacos de lenços de papel meio desintegrados na mão. Devo dizer, porém, que os habitantes da serra (e os construtores de casas na serra), sem dúvida convencidos também de que vivem num país tropical, esqueceram instalar qualquer sistema de aquecimento naquelas geladeiras com telhado. Assim longe chegam as ilusões identitárias construídas pelos Estados-Nação. Também Espanha é um país mediterrâneo mesmo para quem só conhecemos as gélidas águas do norte do Atlântico. Mas a adaptação climática, passados os primeiros momentos de choque e desconcerto, foi rápida. Até tomei banho de cachoeira nas geladas águas do Encontro dos Rios. Rapidamente, mas tomei. Foi cair e sair, com uma dor pungente no peito e na testa. O astral da beira do rio, aliás, era totalmente carioca. Um quiosque de madeira, umas mesas e cadeiras de metal espalhadas na margem esquerda da corrente e muita cerveja gelada para tomar ao sol. Com música muita alta, quebrando o barulho constante das águas que batiam nas rochas do leito do rio. Mas bem selecionada, felizmente. Luís Melodia, Cassia Eller, Titãs...
Este urbanita europeu também descobriu finalmente a mandioca, a planta, porque até então só conhecia os seus produtos no prato. Um pequeno arbusto de caule fina com tubérculos enormes baixo a terra. Poucos pés, apenas cinco ou seis, rendem vários quilos de aipim. E na casa da tia Helena comi o melhor aipim frito da minha vida, bem crocante por fora e macio, desmanchando na boca, por dentro. Uma delícia simples e prodigiosa.
Faltou apenas ver na noite estrelada (ou estrelecida, como dizia o clássico) as Nuvens de Magalhães, que procurei no céu e não achei. Talvez alguma noite na praia consiga, com o auxílio do mapa que ganhei do meu amigo o Martin Pawley, que tem o saudável costume de olhar pra cima.
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Este fim de semana estive em São Paulo por terceira vez em minha vida. Na realidade é a quarta vez que visito essa cidade, mas a primeira acho que não deve se ter em conta, pois não saí do aeroporto, que, como sabem, é um não-lugar, um nengures. Como aconteceu as outras vezes, en nenhum momento consegui saber onde é que estava, totalmente desorientado. Não tenho uma imagem mental do plano de São Paulo, não faço a menor idéia de sua forma e extensão, só conheço o que intuo. Como nas duas ocasiões anteriores, deixei me levar pela minha mulher, que, além de uma maior capacidade de orientação, conhece melhor a cidade. A mega-cidade. Desde o ar, antes de pousar em Congonhas, São Paulo parece uma maqueta gigante, com aqueles arranha-céus que brotam das entranhas da terra. Senti realmente vontade de me perder naquela selva de asfalto; às vezes é bom se sentir ponto na imensidão, na mesmice do nada. O horizonte não existe em São Paulo, por cima dos edifícios apenas uma massa cinzenta de poluição. Já desde o chão, o céu longínquo tem degraus com antenas de televisão e heliportos.
Mas São Paulo não é só uma cidade grande, é também uma grande cidade, onde tudo acontece. Da noite do sábado, por exemplo, lembro apenas uma bruma. Depois de uma terrível dor de dentes e uma intervenção de urgência, após um dia e meio sob os efeitos de analgésicos e antiinflamatórios, com meia mandíbula dormida pela anestesia, duas simples caipirinhas e dois chopes podem causar estragos na consciência. Mas nada grave, e tudo dentro da legalidade, sem risco de ser encarcerado pelas guardiãs da ordem (e o progresso?). Aliás, São Paulo tem uns bares muito legais.
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Amigo, sem necessidade
de refrám nem paralelismo,
direi a minha angústia e menos o meu gozo.
Como cando eu vestia o brial da brancura,
coberta hoje de púrpura ou despida,
elevo a minha voz como umha pomba ou lóia
no amanhecer ferido polo lume do amor
ou co chumbo na asa da arela estrelecida.
Amigo, já nom cavalgas
para a fronteira cando vem o maio,
nem eu teço já a tranca dos meus dias de ausência
com báguas de amargura resignada,
dogal dos meus suspiros no teu colo
que os meus braços nom premem.
Voando vás ao longe, vés num voo,
beijas-me por teléfono,
acendes-me as entranhas cabogramicamente.
Eu monto a égua apocalíptica
da liberdade de ventas fumegantes,
e a minha boca é doce e azeda a um tempo,
madurada em fatal celme de pressa e fogo.
Amigo, talvez és
plural e intermitente,
fragmentário e efémero.
E eu som eterna e múltipla,
moribunda e incólume.
Fumando as horas de violento pulso,
batendo cos meus calcanhares as ilhargas da vida,
galopo contra ti ou fujo-te, cantando
sem leixa-prem nem dobre,
agora feliz morte, magoado nacimento
agora, alegre pranto, duro riso,
eu, voz em viva carne, dor e gozo, cantando
o teu amor, amigo.
RICARDO CARVALHO CALERO, Cantigas de amigo e outros poemas, Galiza, século XX.
Na televisão, um cara vestido de branco fazendo-se chamar de bispo-alguma-coisa, anunciando de maneira reiterada, quase hipnótica, uma sessão de Descarrego que ia acontecer num lugar suntuoso, no meio da pobreza, chamado pomposamente de catedral mundial da fé. As cenas do evento, repetidas uma e outra vez, eram apavorantes. Uma massa de pessoas levadas à histeria mediante a repetição de rituais, movimentos com os braços, slogans, alguns em transe. No platô, três testemunhas do poder maléfico do Encosto, algum tipo de maldição que, segundo o bispo, encosta nas pessoas fazendo-as sofrer. Um caso: uma mulher pobre, filha de pais alcoólatras, que deixou de ir à escola sendo criança e que se prostitui desde os treze anos. A culpa? Do Encosto. A solução? O Descarrego. E para ajudar, tele-venda de um pequeno frasco de vidro com um líquido verdoso que contem, segundo o bispo, os elementos da Santíssima Trindade. Ficamos sem saber quais são esses elementos, mas tudo bem. Desde a suntuosa catedral, mais testemunhos de pessoas que conseguiram encontrar trabalho, amor, equilíbrio após uma sessão de Descarrego. Imagens manipuladas, para tornar irreconhecíveis os protagonistas, de alguns "carregados" exorcizados pelo bispo. Pega a cabeça deles com as duas mãos, mexe-a e ouve-se uma voz gutural, a do Encosto, exprimindo suas maldades.
Lembrei os endemoninhados da romaria da Virgem do Corpinho, na Galiza. Mas estes são alunos avantajados dos padres da religião católica. Aperfeiçoaram até limites insuspeitados aquelas velhas técnicas e fazem uso do mais moderno marketing sem complexos. Os lucros parecem ser muitos. Alguns desses bispos até são deputados, e todos parecem ter um grande influência. Dinheiro têm demais, pro meu gosto. Como vêem, algumas pessoas agem desde lugares bem menos nobres do que o sovaco de Cristo.
Bom. Agora eu também fiquei descarregado.
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Chamamento dos galegos aos povos da Europa:construamos em bruxelas o oceano da dignidade (e da diversidade)
(Manifesto lido hoje, dia 5 de junho, em várias cidades europeias)
Galiza, autêntica Finisterrae da Europa, é a costa do mundo mais golpeada pelas marés negras.
Os seus moradores suportamos a ameaça do tráfego constante de petroleiros obsoletos que navegam fugindo aos controlos e às inspecções. Ao mesmo tempo, sofremos a desprotecção da administração espanhola que, apesar de todos os graves acidentes, nunca chegou a preparar um verdadeiro plano de salvamento.
Após as terríveis experiências do Polycommander, do Urquiola, do Casón, do Aegean Sea... chegou o Prestige para pôr em cena literalmente a morte do mar. Um único navio que foi capaz de emporcalhar as costas de Portugal a França e que deitou todo o seu poder de destruição contra uma das últimas
praias virgens do Ocidente: a Costa da Morte.
Perante esta hecatombe anunciada a sociedade galega disse Nunca Mais!,
e mobilizou-se de uma forma extraordinária.
Vários meses volvidos o problema continua sem solução: o navio permanece afundado, a derramar
fuel-óleo. As costas e nomeadamente os fundos da plataforma continental
continuam totalmente poluídos.
E nenhum representante da administração assumiu a sua responsabilidade pela tragédia.
Portanto, é fundamental que também em Bruxelas se oiça o grito dos habitantes do fim do mundo: Nunca Mais!.
Em muitos cantos da Europa lateja a mesma ameaça. Nas nossas
mobilizações temos recebido o apoio solidário de pessoas de outros locais golpeados pelas marés negras: desde a Plataforma do Erika, na Bretanha, até aos cidadãos de Ancona, na Itália.
Sabemos que o único antídoto contra o poder omnímodo do petróleo está nas próprias pessoas, na união dos povos de toda a costa da Europa que, por enquanto, sofremos, sozinhos, a desgraça da poluição dos hidrocarburos. A luta contra o fuel-óleo não termina na limpeza de uma rochas e dos fundos
marinhos.
A hecatombe do Prestige torna evidente o fracasso definitivo de um sistema em que o petróleo interessa mais do que os individuos, do que os povos e os estados, do que o próprio cosmos.
Cabe a nós, galegos, como grandes protagonistas na tragédia, pôr em
causa esta ordem de coisas, e converter-nos ainda em embaixadores da
dignidade do oceano. É por isso que, da Finisterrae, lançamos este grito. Queremos que esta mensagem chegue a todos os lugares. Queremos impulsionar uma grande maré. Queremos que cada pessoa, cada cultura seja uma gota de vida. E queremos, no dia 14 de Junho, alagar Bruxelas para construirmos juntos o grande oceano da diversidade.
Esta é a aliança do mar, e eis-nos a nós, gentes do litoral, aqui, para inventar o futuro: Nunca Mais!
(Está a subir a maré, a da dignidade; tu não fiques varado em seco.)
O pior de se sujeitar à inércia do conhecido é que aí se fica realmente à mercê do desconhecido. A primeira vez que subi num ônibus no Rio entrei pela porta dianteira, como se estivesse na Corunha, em vez de o fazer pela porta traseira. O motorista olhou para mim, sem se importar muito, sem se importar nada, na realidade. Meteu primeira, fechou a porta e saiu correndo. Enquanto eu, totalmente perdido, desnorteado, comprovava com vergonha que o cobrador estava na parte de atrás, mão sobre mão, meio dormido. Agarrei-me como pude, assumindo com a maior dignidade possível as olhadas dos passageiros, que se perguntavam alguma coisa que eu daquela nem imaginava. Ninguém me reclamou o dinheiro, a viagem saiu de graça. Também não adiantou nada, estava no ônibus errado.
Agora sei que pela porta dianteira entram escolares de rede pública devidamente uniformados, idosos e camelôs vendendo todo tipo de coisas. Talvez a expectação causada pela minha presença tinha a ver com o difícil que resultava incluir-me em algum desses coletivos. Agora sei, e sempre é demasiado tarde, que devi dissimular gritando "biscoitos grooobo!", "olha aa salaaada", "amendoiiinnss", "chocolaate", ou alguma coisa do estilo. De qualquer maneira, nunca conseguiria alcançar, nem longinquamente, a magnífica elegância, a mais do que pulcra retórica, a elaboração mercadológica de um camelô que entrou no meu ônibus dias atrás. Depois de se apresentar educadamente e pedir perdão por atrapalhar o nosso sossego (ir de ônibus no Rio não é nunca uma experiência tranqüila (dirigir ao lado dos ônibus no Rio também não tranqüiliza (cruzar uma rua por onde os ônibus passem a velocidades insuspeitadas para monstros dessas dimensões deixa qualquer um apreensivo))), enfim, depois de um breve e cortês introito foi ao cerne da questão. Da caixinha de papelão que levava no colo tirou uma caneta plástica, leve, de traço fino e agradável, que se pode encontrar em qualquer loja por 80 centavos, mas que ali, naquela ocasião imperdível se oferecia por apenas 50 centavos. Mas a coisa não terminava aí, como promoção do dia ofereciam-se três canetas, três, por um preço inacreditável, e, como se fosse mágica, da caixinha saiu também uma lapiseira com ponta e prendedor metálico, que fazia um ruído oco ao ser puxado por dois dedos que demostravam empiricamente a sua dureza e flexibilidade, e, mais ainda, uma caixinha plástica com grafites para a lapiseira, de 0,5 milímetros de grossura, e tudo, tudo, três canetas de traço fino e agradável, uma lapiseira com ponta e prendedor metálico, e uma caixinha plástica com grafites para a lapiseira, de 0,5 milímetros de grossura, por apenas R. Não dava para acreditar. Pensei imediatamente que estava diante da oportunidade da minha vida. Eu, que não uso lapiseira e tenho canetas sobrando.
Nos ônibus vêem-se muitas coisas, mas camelôs podem se encontrar por toda a parte. No centro da cidade vinha de presenciar a perseguição a que são submetidos pela Guarda Municipal, que mais parecem reproduções autóctones de robocop, com escudos plásticos e capacetes, vestindo uma espécie de moderna armadura de borracha. Formavam uma muralha humana, ameaçadora, em um dos lados da Avenida Rio Branco. Do outro lado, alguns camelôs com carrinhos e bugigangas, expectantes. Cruzando a rua, quando eu me dirigia a pegar o ônibus, um policial com a pistola na mão, o dedo no gatilho, apontando ao alto.
Ao dia seguinte li no jornal que houve, de fato, tiros ao alto da polícia. Um morador queixava-se numa carta ao editor do perigo das balas perdidas. Perigoso demais para quem só tem imaginação, e mais nada.
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No Globo de domingo passado Elio Gaspari comentava em sua página a verdade descoberta sobre o famoso resgate da soldada Lynch. Arrumação do pentágono, que nem filme de Rambo, para levantar, mais ainda se fosse possível, o orgulho patriótico dos americanos. Nem a soldada Lynch fora atingida por fogo inimigo, após uma resistência heróica, nem estava presa num bunker, mas num hospital desassistido, nem tinha sido maltratada pelas perversas tropas de Sadam. Muito pelo contrário, estava recebendo os melhores cuidados médicos dada a penosa situação que os próprios EE.UU tinham criado. Parece que os autores do documento, possuídos por alguma extemporânea pretensão artística, até repetiram algumas cenas que tinham ficado ruim no "improvisado" vídeo. Dava para imaginar, em tempo real, que aquilo que estávamos assistindo na televisão não devia ser bem assim. É óbvio de mais o empenho por imitar a realidade construída por Hollywood. E, aliás, não somos novos nisto. Temos experiências passadas para comparar. Aquela gaivota petroleada que vimos nas televisões quando a primeira guerra do golfo, pretensa vítima inocente da cruel artimanha de Sadam, quem teria queimado poços de petróleo antes de se retirar de Kuwait, era na realidade mais uma vítima do naufrágio de um petroleiro desse capitalismo delinqüente capaz de incluir a guerra entre as suas estratégias comerciais.
O pior de tudo é que já nem importa sabermos que tudo é mentira. Como diz uma das proposições de Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, "no mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso".
Vejo-os quase todos os dias. São jeeps verdes, como de safári, estilo militar, com turistas sentados em bancadas na parte traseira do caminhão e armados de máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, subindo ou descendo a floresta da Tijuca. Mas a floresta está na cidade, bem no meio dela, nesta maravilhosa confusão de mata e asfalto. Com o mesmo troço percorrem outros lugares do Rio, fotografando os exemplares autóctones que encontram no caminho. Domingo passado vi uma mulher loira fotografando uma mendiga sentada no calçadão do Arpoador. Era uma velhinha esfarrapada que sorria docemente para a máquina.
Já me senti observado por olhos curiosos e distantes indo comprar pão e suco na padaria Século XX. As remelas ainda nos olhos, os meus poucos cabelos em ponta, que nem as asas do capacete de Asterix. Aí percebi os flash a mim dirigidos e me senti descoberto, como um artista global flagrado em posição indecorosa pela revista Bundas (quero dizer Caras). Minha penosa imagem matutina (e minha alma sonolenta?) ficará presa no álbum de fotos de algum habitante do norte da Europa, como mais uma lembrança do Rio. Curioso destino.
Não é a primeira vez que me sinto assim indígena. Numa outra ocasião fui fotografado por uma turista solerte no cemitério da Corunha, que desaba no mar. O que faz um turista num cemitério? Isso eu não sei, mas parece que os camposantos são lugares muito visitados. Alguns são célebres por conservarem os restos de alguma personagem histórica, convertendo-se assim em destino final para modernos peregrinos laicos mitomaníacos. Em Lisboa, dois colegas de um curso de verão, um canadense e um alemão, pessoanos, convidaram-me anos atrás a visitar com eles o Cemitério dos Prazeres. Recusei-me, preferi ir à praia, onde os prazeres estão vivos sobre a areia. É o que podemos chamar "turismo mórbido ou funerário", a forma mais macabra em que se manifesta esse desejo de estar ali (onde for), de documentá-lo e contá-lo depois aos amigos, que alimenta doentiamente nossas ânsias de consumo turístico.
Na Galiza, há tempo que progride com a anuência e o estímulo dos nossos governantes um tipo de turismo que podemos chamar "catastrófico". Durante os anos em que os restos do petroleiro Aegean Sea permaneceram encaixados nas falésias que circundam a Torre de Hércules, foram muitos os visitantes que se achegavam para se fotografarem no lugar do desastre. Também muitos dos visitantes que recebeu Galiza durante a páscoa passada foram até lá para verem com os próprios olhos a dimensão da catástrofe do Prestige, e para se fazerem a foto (estou pensando agora que talvez a falta de médios para prevenção deste tipo de acidentes faça parte de um ardiloso plano de Manoil Fraga para reativar nossa economia e nos situar no mapa; inconfessável, mas com a mesma dimensão que os programas de "turismo rural").
Na mesma onda do "catastrófico" está o "turismo indigente", organizado por companhias que agenciam pra você uma visita guiada nos centros de pobreza do Rio. A favela, destino turístico. É verdade que estas agências oferecerem certas contraprestações sociais e colaboração para o desenvolvimento das comunidades carentes. Ocorre-me, contudo, um senão (descomunal): dado que vendem ao turista a possibilidade de visitar uma favela, de estar ali, num local pobre e violento, e poder contar a experiência, precisam indefectivelmente da existência da favela e da perpetuação dessa pobreza e violência que origina a visita turística e os seus lucros. Aliás, alimentam o descompromisso de quem, estando ali, não está nem aí, e depois vai tomar banho de sol em Copacabana. Fazem da favela algo tão imutável quanto o Pão de Açúcar, um outro prodígio da Cidade Maravilhosa.
Nunca mais vou me deixar fotografar por estranhos.
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"Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
"Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
Famigerado?
"Sim senhor..." e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
"Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
"Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
"Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
"Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse!...
Embora não se tenha produzido um terremoto político nas eleições municipais de ontem, alguma coisa está mudando na Galiza. Devagar. Lula justificava a "radical moderação" de sua política econômica dizendo que o Brasil é um país imenso, e que não se pode virar o rumo de um transatlântico (ou de um petroleiro, não é?) fazendo bruscas manobras no leme. Será que os votantes galegos pensam a mesma coisa? (aliás, diga-se de passagem que os governantes galegos e espanhóis desconhecem totalmente essas normas básicas de navegação, como demostraram há pouco mais de seis meses).
Possivelmente, além da satisfação pela perda total de votos do partido no governo, pela mudança parcial do panorama, deva reconhecer que umas eleições municipais, onde os contextos são diferentes e os interesses cruzados, provoca sempre resultados diversos, o qual permite fazer leituras confrontadas e até contraditórias. Eu fico com um dado que me produz satisfação e desconforto, ao mesmo tempo. O imprefeito-alcaide da Corunha, Sir Francis Vázquez perdeu dez mil votos e quatro vereadores, mas conseguiu mesmo assim a sua sexta maioria absoluta. Aliás, nem precisaria tanto, poderia governar com o apoio pontual (seria, com certeza, um ponto imenso, a escuridão total) dos colegas do PP, com quem na realidade divide o mesmo espaço político (e projeto de cidade e interesses econômicos e projeto de país e fundamentalismo religioso e trauma lingüístico e ardor bélico...).
Sem pretender emular Plutarco e as suas "Vidas paralelas", reconheço alguns curiosos paralelismos entre os munícipes regedores das "minhas" cidades, que às vezes se amalgamam em figuras monstruosas povoando os meus pesadelos (está ventando muito estes dias no Rio, e eu sempre fui um pouco aventado), e assim me parece estar ouvindo na televisão a improvável voz de Francisco Maia ou lendo no jornal o último depoimento alucinado de César Vázquez. Devíamos reconsiderar muitas coisas das nossas democracias, formais of course, quando a administração mais próxima ao cidadão, aquela onde a participação direta seria fácil, possível e necessária, produz tal profusão de caudilhos, de pequenos césares aliados das elites locais, que conseguem se perpetuar no poder com políticas populistas, de vitrine, afagando os míseros orgulhos provinciais ("sarna pa los demás", em palavras de Sir Vázquez) de uma cidadania-espectadora, que vê, ouve e aplaude, dado o caso.
Aí veio de novo a minha bílis.
Estamos de parabéns.
Estamos de parabéns?
A pintura acima faz parte da exposição da obra do pintor holandês do século XVII Albert Eckhout, que se pode visitar no Paço Imperial, no Centro do Rio. Eu fui ontem. É muito recomendável, e também se pode visitar virtualmente.
Visão de colonizador, extasiado pela exuberância natural e o extraordinário mosaico humano do nordeste brasileiro, que pretende representar com todos os pormenores, em quadros repletos de animais e vegetais "exóticos" aos olhos do europeu. Na minha memória ficou gravada a plácida visão do canibalismo, no quadro da mulher que carrega às costas, sorridente como uma madonna, um cabaz com uma perna humana de fora.
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